O pecador não quer obedecer a Deus
A saeculo confregisti iugum meum, rupisti vincula mea, et dixisti: non serviam – “Quebraste desde o princípio o meu jugo, rompeste os meus laços, e disseste: não servirei” (Jr 2, 20)
Sumário. Grande Deus! Todas as criaturas obedecem a Deus, como a seu supremo Senhor; os céus, a terra, o mar, os elementos obedecem-lhe de pronto ao menor sinal. E o homem, mais amado e privilegiado de Deus do que todas essas criaturas, não quer obedecer-lhe, e cada vez que peca, diz por suas obras com inaudita temeridade a Deus: Senhor, não Vos quero servir ― Confregisti iugum meum, dixisti: non serviam. Irmão meu, é isso o que tu também fizeste, se tiveste a desgraça de pecar. I. Grande Deus! Todas as criaturas obedecem a Deus como ao seu soberano Senhor; os céus, a terra, o mar, os elementos obedecem-lhe de pronto ao menor sinal. E o homem, mais amado e privilegiado de Deus do que todas essas criaturas, não lhe quer obedecer, e cada vez que peca, diz, por suas obras, com inaudita temeridade a Deus: Senhor, não Vos quero servir. Confregisti iugum meum, dixisti: non serviam ― “Quebraste o meu jugo e disseste: não servirei”.
O Senhor lhe diz: não te vingues, e o homem responde: quero vingar-me; ― não te aposses dos bens alheios: quero apossar-me deles; ― abstém-te desse prazer desonesto: não quero abster-me. O pecador fala a Deus do mesmo modo que Faraó, quando Moisés lhe levou da parte de Deus a ordem de restituir o seu povo à liberdade. Aquele temerário respondeu: Quem é esse Senhor, para que eu ouça a sua voz? Não conheço o Senhor (Ex. 5, 2). O pecador diz a mesma coisa: Senhor, não Vos conheço, quero fazer o que me agrada. Numa palavra, ultraja-o face a face, e volta-lhe as costas. No dizer de Santo Tomás, é isso exatamente o pecado mortal: o voltar as costas a Deus, o Bem incomutável. É disso também de que o Senhor se queixa: Tu reliquiesti me, dicit Dominus; retrorsum abiisti (III Re 12, 28). Foste ingrato, assim fala Deus, porque me abandonaste ao passo que eu nunca te teria abandonado: retrorsum abiisti, voltaste-me as costas.
Deus declarou que odeia o pecado; portanto não pode deixar de odiar igualmente a quem o comete. E o homem, quando peca, ousa declarar-se inimigo de Deus e resiste-lhe na face: Contra Omnipotentem roboratus est ― “ele se fez forte contra o Todo-poderoso”, diz Jó (Jó 15, 25). O mesmo santo varão acrescenta que levanta o colo: isto é o orgulho, e corre para insultar a Deus: arma-se com uma testa dura, isto é, com ignorância, e diz: Quid feci? Que é que fiz? Onde está o grande mal que fiz pecando? Deus é misericordioso; perdoa aos pecadores. Que injúria! que temeridade! que insensatez!
II. Irmão meu, se nós também no passado quebramos o jugo suave do Senhor, e recusando-lhe a obediência tornamo-nos escravos do demônio, peçamos agora, humilhados e contritos, o perdão de nossos pecados; esforcemo-nos, com o nosso arrependimento, e com os nossos obséquios, em reparar um pouco as muitas ofensas que, particularmente nestes dias de carnaval, são feitas a nosso Pai celestial.
Eis aqui a vossos pés, meu Deus, o rebelde, o temerário, que tantas vezes teve a audácia de Vos injuriar no rosto e de Vos voltar as costas, mas que agora Vos pede misericórdia. Vós dissestes: Clama ad me, et axaudiam te (Jer 33, 3) ― “Clama a mim e eu te atenderei”. Um inferno ainda é pouco para mim: confesso-o; mas sabeis que tenho mais dor por Vos haver ofendido, ó Bondade infinita, do que se houvesse perdido todos os meus bens e a vida. Ah! Meu Senhor; perdoai-me e não permitais que Vos torne a ofender. Vós por mim esperastes, afim de que bendiga para sempre a vossa misericórdia, e Vos ame. Sim, bendigo-Vos, amo-Vos e espero pelos merecimentos de Jesus Cristo, nunca mais separar-me do vosso amor. Foi o vosso amor que me livrou do inferno, esse mesmo amor deve livrar-me do pecado no futuro.
Agradeço-Vos, meu Senhor, estas luzes e o desejo que me inspirais de sempre Vos amar. Peço-Vos que tomeis plena posso de mim, de minha alma, de meu corpo, das minhas faculdades, dos meus sentidos, de minha vontade e da minha liberdade: Tuus sum ego, salvum me fac (Sl 118, 94) ― “Eu sou vosso; salvai-me”. Vós que sois o único bem, o único amável, sede também o meu único amor. Dai-me fervor em Vos amar. Já Vos ofendi muito; portanto não me posso contentar com amar-Vos simplesmente; quero amar-Vos muito para compensar as injúrias que Vos fiz. De Vós espero esta graça porque sois todo-poderoso; espero-a também, ó Maria, das vossas orações, que são todo-poderosas para com Deus.
(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa Inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 252-254)
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